Medir a felicidade pode tornar o altruísmo mais eficaz?

Por Celso Vieira

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Medir para dar mais felicidade? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Pixabay)

Filosofia

O Altruísmo Eficaz (AE) não está essencialmente comprometido com o utilitarismo, mesmo assim, é inegável que essa seja a maior influência filosófica do movimento. De maneira bem simples, o utilitarismo é uma teoria ética que segue um princípio básico: para se escolher qual ação devemos fazer, deve se escolher a ação que maximize a felicidade total. Na definição clássica, o utilitarismo tem uma definição hedonista da felicidade em que esta é definida em termos de presença de prazer e/ ou ausência de dor.1 Assim, basta estimar o resultado total na hora de decidir entre comprar um sorvete que vai me gerar um certo prazer ou comprar uma rede anti-malária que vai proteger uma família dessa doença por alguns anos.

Se formos olhar as ONGs recomendadas pelo AE identificaremos que, além de um utilitarismo hedonista, também há uma tendência a privilegiar ações que levam à ausência de dor em vez de ações que geram prazer. Afinal, 7 entre as 8 ONGs recomendadas pela GiveWell são intervenções na área de saúde que tentam aliviar o sofrimento de doenças que atacam a parte mais pobre da população mundial. Assim, podemos dizer que o AE segue um utilitarismo (maximizar a felicidade total) hedonista (onde felicidade é medida através de prazer e dor) negativo (dando ênfase em acabar com a dor).

Economia

O utilitarismo tem sempre que responder à crítica que concerne à dificuldade (e talvez à impossibilidade) de se medir e comparar unidades de prazer e dor. Para contornar esse problema, a GiveWell segue a tendência dos estudos econômicos de se valer de índices como DALYs e QALYs que ‘medem’ os anos de vida perdidos por problemas de saúde, deficiência ou morte e os anos de vida adquiridos com qualidade de vida, respectivamente.

A principal crítica aos DALYs/ QALYs é que ao oferecerem números estes dão a impressão de serem medidas objetivas, quando, na verdade, dependem de várias escolhas teóricas subjetivas. Por exemplo, os críticos dizem que essas medidas colocam uma importância desproporcional nas doenças físicas em comparação com as mentais. Essas medidas também colocam mais peso em casos que afetam os mais jovens. Em vista disso não surpreende que doenças ocorridas na infância são consideradas como os problemas mais sérios, sendo responsáveis por tirar 90 milhões de anos de vida ajustados pela incapacidade (DALYs) anualmente da população mundial. Pode se comparar com a depressão, o maior problema entre as doenças mentais, que tira quase 52 milhões de DALYs por ano na população mundial.

Psicologia

Hoje em dia, os economistas reconhecem as limitações desses medidores, mas defendem que os DALYs e QALYs continuam a ser a melhor opção. É importante notar que as assunções feitas não são tão afastadas do senso comum. Nossa tendência é colocar males físicos como necessidades mais básicas do que males mentais. Isso é bem capturado na hierarquia de necessidades de Maslow que coloca as necessidades psicológicas depois das necessidades fisiológicas. Isso pode ser um problema, pois essa tendência leva a se relegar como secundárias as doenças mentais.

O relatório do fardo de doenças (Global Burden Disease) apurou que a depressão ataca 350 milhões de pessoas por ano e a ansiedade ataca 146 milhões. O número de pessoas que vive em extrema pobreza é maior, são 702 milhões. Porém, há de se notar que enquanto os números de pessoas vivendo em pobreza extrema vem diminuindo anualmente, a tendência no caso das doenças mentais é o contrário; os casos vêm aumentando. Isso levou a alguns membros do AE a se preocuparem se as doenças mentais deviam entrar na lista de causas priorizadas pelo movimento.

Felicidade

Em nenhum momento a GiveWell ou o AE afirma que a felicidade se reduz a ausência de dor (como seria o caso de uma posição utilitarista hedonista negativa). Porém, ainda que não seja uma condição suficiente para uma vida feliz, fica implícito nas escolhas das ONGs recomendadas que a ausência de doenças físicas não só é uma condição necessária para uma boa vida como também é aquela na qual as intervenções têm o potencial de gerar o máximo de bem (ou seja, melhorar a vida dos beneficiados).

Uma vez que as recomendações passam pelo crivo subjetivo da equipe da GiveWell, pode ser o caso que uma hierarquia de necessidades como aquela de Maslow exerça algum efeito. Ademais, como vimos, o simples uso dos DALYs e QALYs como medidores esconde essa assunção subjetiva. O fato é que das 8 ONGs indicadas 7 combatem problemas de saúde. São 4 que combatem a infecção por vermes, 2 que combatem a malária, e 1 que combate a desnutrição. O alvo majoritário, mas não único, também são as crianças (principalmente no caso das que combatem a infecção por vermes e desnutrição).

Bem-estar subjetivo

A pergunta que se segue é, como medir a felicidade? Atualmente, o que os economistas e psicólogos fazem é se valer da noção de bem-estar subjetivo (SWB, subjective well-being). Para medi-lo eles fazem três tipos de pergunta:

Hedonistas: Trata-se de perguntas sobre emoções específicas em ocasiões específicas da vida. Por exemplo, você está alegre agora? Para responder basta expressar o que sentimos.

Avaliativas: Trata-se de perguntas que pedem uma avaliação que implica um nível mais profundo de reflexão sobre a vida. Por exemplo, você se sente satisfeito com o seu trabalho? A resposta implica em comparar com seu trabalho anterior, com seus colegas de trabalho, considerar o desafio intelectual, o ambiente de trabalho, as possibilidades futuras, etc.

Eudaimonia: Engloba perguntas sobre o sentido e o propósito da vida. Aqui é necessário uma reflexão abstrata e geral sobre a nossa existência.

Resultados

A comparação entre os resultados de tais medidores leva a conclusões instigantes. (Para ver os gráficos e a referências dos estudos citados na sequência ver a postagem de Michael Plant no fórum do AE.) Por exemplo, as medidas hedonistas não apresentam correlação com educação, variam ao longo dos dias da semana, aumentam com a idade e dependem de quanto a pessoa ganha apenas até uma certa quantia. As medidas avaliativas, por sua vez, são correlacionadas com educação, continuam aumentando com o aumento do ganho, não variam nos dias da semana e têm um gráfico em forma de U em relação à idade.

A partir desse tipo de pergunta estimou-se quais são os fatores que mais interferem na satisfação das pessoas. Dobrar os ganhos é associado a um aumento constante na satisfação de vida, por outro lado, esse ganho dobrado que os outros recebem causa quase a mesma perda na satisfação dos que não recebem.2 Essa seria a explicação para o chamado paradoxo de Easterling que se refere ao resultado surpreendente de que um aumento no rendimento médio de um país não leva a um aumento correspondente na média da satisfação com a vida.

Outro resultado relevante é a constatação que o fato de alguém se tornar deficiente não tem um impacto tão grande na satisfação de vida como tendemos a estimar. O que as pesquisas mostram é que ao se tornar deficiente a avaliação da satisfação com a vida cai muito mas, após algum tempo, ela retorna a níveis normais (ainda que um pouco abaixo do que eram antes do acontecimento). Isso pode indicar um erro na estimativa dos DALYs e QALYs. Por outro lado, isso talvez confirme a forma mais simples do utilitarismo negativo. No caso de as condições de deficiência não gerarem dor, faz sentido que elas não sejam associadas com a infelicidade.

Por fim, saúde mental, emprego e ter um parceiro têm um impacto muito maior do que dobrar os ganhos na satisfação subjetiva. Em vista disso Plant propõe que o AE passe a usar as métricas obtidas a partir da pergunta: Numa escala de 0-10 qual é o seu grau de satisfação nesse momento? Ainda segundo ele, os resultados de se considerar esse medidor faz com que as doenças mentais passem a ser as que causam mais sofrimento no mundo. Portanto, o movimento deveria avaliar ou implementar intervenções que tentem resolver tais problemas. O principal tratamento direto para essas seriam as terapias cognitivas comportamentais. Entre os projetos que ele indica temos: StrongMinds, que oferece aconselhamento psicológico interpessoal a mulheres em Uganda e o Friendship Bench que providencia terapia de solução de problemas no Zimbábue.

Metafísica

No que diz respeito ao estudo dos aspectos conceptuais mais gerais da estrutura da realidade (Metafísica), felicidade, satisfação ou bem-estar são conceitos vagos que abarcam, cada um, vários fenômenos que sequer precisam ser os mesmos em diferentes pessoas. No entanto, há pontos comuns suficientes que permitem que nós utilizemos a palavra de maneira significativa. Ademais, a vaguidade também é importante porque a nossa experiência subjetiva é vaga e, muitas vezes, não sabemos exatamente quais sãos os fatores mais importantes que determinam se vamos responder sim ou não para a pergunta: você é feliz?

Isso é comprovado pelo movimento observado no exame dos resultados do bem-estar subjetivo acima referidos. Identificar que alguém é infeliz não é muito informativo em termos práticos já que, sem saber a causa disso, não há como propor um tratamento. É por isso que após a medição subjetiva é preciso retornar e encontrar a causa objetiva da insatisfação como doença mental, desemprego, etc.

Nesse ponto, chegamos a um problema metafísico sobre o conceito de felicidade.3 Trata-se de um conceito epistemologicamente subjetivo ou objetivo? Ou seja, conseguimos alcançar esse conhecimento de forma objetiva ou subjetiva? Achar que é epistemologicamente subjetivo implica em achar que ser feliz é equivalente a se sentir feliz. Quem acha que é epistemologicamente objetivo não acredita nessa equivalência. Ou seja, podemos ter pessoas que acham que são felizes e não são.

Vamos começar por pensar no caso da saúde que é mais trivial. Saúde, com certeza, é epistemologicamente objetivo. É inegável que, muitas vezes, sentimos que estamos doentes e realmente estamos doentes. Porém, há também vários falsos negativos, ou seja, casos como os estágios iniciais de um câncer [Pt. cancro] em que não sentimos que estamos doentes, quando, na verdade, estamos.

Em vista dos resultados acima, temos que pensar no caso da saúde mental. Aqui também parece haver uma objetividade epistemológica já que é um especialista da área de saúde que deve diagnosticar casos de doença mental. Por exemplo, há várias pessoas que estão deprimidas e acham que não estão, bem como há aqueles que se autodiagnosticam deprimidos quando, na verdade, estão apenas tristes.

O último passo seria o caso da felicidade, que é mais controverso. Porém, em vista dos resultados acima referidos, o caso da saúde mental já é suficiente para se questionar o uso exclusivo dos medidores de bem-estar subjetivos ao se avaliar uma causa. Mesmo assim, não é absurdo pensar que as pessoas podem achar que são felizes quando, na verdade, não estão. Isso pode acontecer quando, por exemplo, alguém se diz feliz quando, na verdade, está alegre (algo mais ténue e passageiro). Daniel Kahneman alerta para essa nossa tendência de, diante de uma pergunta difícil para a qual não sabemos a resposta (se somos felizes ou não), acabarmos recorrendo a uma resposta fácil que sabemos (se estamos alegres ou não), mas não responde à pergunta.

A melhor maneira de ver a objetividade da felicidade pode ser pensar a longo prazo. Seria uma situação análoga a uma equipe de esportes que joga mal, mas ganha um jogo. Eles podem achar que são bons em vista do resultado imediato, mas, à medida que jogarem mais partidas, o problema ficará evidente. O caso da felicidade pode se desenvolver de maneira similar. Ainda mais porque a complexidade do conceito multiplica também os motivos de engano criando falsos positivos e negativos.

Não é difícil pensar em um contraexemplo aplicado ao contexto do altruísmo. Suponha que as pessoas gostam de receber atenção e de ter suas opiniões consideradas. Se isso for verdade, o simples fato de se perguntar se a pessoa está satisfeita com a vida ou com a intervenção em questão vai tornar a pessoa contente. Assim, ela vai reportar um número alto na sua escala de satisfação que, no entanto, não condiz com a realidade. Isso pode gerar a conclusão falsa de que a intervenção aumenta a felicidade das pessoas.

A lição resumida é que será sempre necessário identificar a causa do aumento de felicidade reportado e que isso não pode ser feito exclusivamente a partir de questionário sobre a opinião dos participantes.

Conclusão

Como prova o interesse de vários campos do conhecimento, a felicidade tem que ser uma preocupação central em qualquer empreendimento altruísta. A dificuldade de se encontrar um medidor objetivo para ela não deve impedir a tentativa. Afinal, temos que sempre reconhecer o quanto de subjetividade há na seleção dos outros critérios que nos parecem mais objetivos. A breve reflexão acima mostra que qualquer intervenção na área de saúde ou social se beneficiaria bastante de recolher dados sobre o bem-estar subjetivo.

Por outro lado, a pesquisa sobre a felicidade depende de identificação de causas e correlações objetivas para que se busquem intervenções específicas. Os resultados parciais indicam que a saúde mental e as intervenções baseadas na psicologia cognitiva e comportamental podem causar um grande impacto. O problema que permanece é que o custo eficácia das intervenções na área da saúde física e na área da saúde mental varia de acordo com o medidor escolhido.

Diante da objetividade análoga àquela das doenças físicas nos diagnósticos de saúde mental, ainda parece ser melhor manter os medidores como DALYs e QALYs. Entretanto, convém incorporar os resultados dos medidores do bem-estar subjetivos na auto-avaliação das intervenções. Esses, no entanto, não parecem bastar para se justificar mudar o foco das intervenções indicadas. No entanto, dado que o problema da saúde mental é suficientemente grande, e crescente, também segundo os medidores como DALYs e QALYs, faz sentido que ONGs que lidem diretamente com o problema da saúde mental sejam avaliadas e, futuramente, talvez serem incorporadas nas listas de ONGs recomendadas pelo AE.

 

1 Existem vários tipos de Utilitarismo. Os leitores interessados podem começar por aqui.

2 Os resultados também são relevantes para se pensar em programas de transferência direta de dinheiro. No entanto, ele não se aplicaria a programas de salário-mínimo universal, já que todos de uma região receberiam os benefícios.

3 Na sequência vou usar de maneira bem imprecisa a distinção entre objetividade e subjetividade de entidades sociais e físicas de Searle. Aqui se encontra uma abordagem introdutória.

 

 


Texto de Celso Vieira.

 

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